topei, mas antes, conversei com duas pessoas que eu queria ter comigo, porque eu só toparia
se essas duas pessoas estivessem comigo”. E ela contava que estas pessoas eram duas senho-
ras: uma tinha a formação de enfermeira e a outra cuidaria da cozinha. E ela não aceitaria
sem essa senhora da cozinha, que cuidaria também de outras coisas, porque segundo ela, era
uma mulher de um coração do tamanho de um bonde. Ela só topou aquele desafio, aquela
proposta, porque essa mulher estaria junto dela. Penso que na empreitada que estamos nos
propondo temos de estar presente de corpo e alma: já que estamos falando tanto do coração,
acho que isso é fundamental.
Estive no IV Congresso Argentino de Acompanhamento Terapêutico, em Córdoba,
e houve uma homenagem a um psiquiatra que se chama Jorge Pellegrini, responsável pela
Saúde Mental da província de San Luis, que recebeu em 2005 um prêmio da UNESCO em
Saúde Mental. Agradecendo a homenagem dos acompanhantes no referido Congresso, ele
mencionou a reforma que pôde ser implementada em sua província, e agradeceu também
os que o receberam: ele conseguiu fazer uma reforma sem despedir um funcionário do
hospital, utilizando, se apoiando nas próprias pessoas que já estavam lá. Agradeceu a todos,
e agradeceu, principalmente, a cozinheira, pois eles conseguiram fazer a reforma, também
porque a cozinheira, de manhã, quando ia para o trabalho, trazia no bolso o manjericão de
casa para poder dar um sabor diferente para a comida que iria fazer no hospital.
A reforma é feita com tudo que é possível, mas fundamentalmente, com o que traze-
mos em nossa bagagem pessoal, com o que somos, e, dessa forma, nos implicamos até o
último fio de cabelo, ou melhor, até a última corda do coração, não é? Vocês sabem disso.
Como parte de nossa bagagem é interessante evocar o que nossa literatura desvela
sobre essas questões. Para isso, gostaria de falar mais um pouco do Grande Sertão e do
Miguilim.
Quero abordar uma cena que considero paradigmática no tipo de trabalho que po-
demos realizar. Nela podemos encontrar a transformação de uma situação psíquica, humana
por meio da amizade entre mãe e filho e com o uso de uma situação que surge em um valor
icônico: Miguilim, do Campo Geral, garoto sofrido, sua mãe não gostava da cidadezinha
em que viviam, achava muito feia; o bonito, a beleza estava para trás do morro, aonde ela
nunca ia. Era uma pessoa que se entristecia pela feiúra, e Miguilim tentava transformar isso.
“Então a noite descia e recebia mais, formava escuridão feita. Daí dos demais deu
tudo vaga-lume. Olha, quanto me encharcou se desajuntando no mar, por um chorinho
desse parece festa, insano. Miguilim se deslumbrava: - Chica, vai chamar mãe! Para ela ver
quanta beleza!” Mais adiante no mesmo texto: “Mãe, minha mãe, o vaga-lume! Mãe gos-
tava, falava afagando os cabelos de Miguilim. Por meio de um deles é um aceno de amor.”
Se atentarmos para a questão do amor como aparece na cena descrita, poderíamos nos inda-
gar de que amor se fala?
No texto de Guimarães Rosa, encontramos na fala de Riobaldo algo que pode nos
esclarecer. Ele nos diz: “Amor é a gente querendo achar o que é da gente”. Amor, anseio do
pressentimento de si? O gesto amoroso do Outro não nos devolve o que mora em nós como
sonho pressentido de si? Somos a memória do que habita no outro?
Continuemos em companhia, comendo do mesmo pão, de Rosa. Em seu poema
Revolta de Magma, na última estrofe nos diz:“...mas não quero ir para mais longe, dester-
rado, porque a minha pátria é a memória, não quero ser desterrado, porque a minha pátria é
a memória”.