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A defesa de uma atitude filosófica na psicologia: breve reflexão sobre a
prática psi e o processo de medicalização
The defense of a philosophical attitude in psychology: a brief reflection on the psi
practice and the process of medicalization
Murilo Galvão Amancio Cruz1
Resumo: É inegável a influência da filosofia no saber psicológico. Ainda que vivamos a “era
das neurociências”, na qual o cérebro assume papel de destaque para a leitura de nossas
emoções, sensações e prazeres de acordo com o número ou natureza de sinapses, não podemos
nem devemos desconsiderar todo o legado que a filosofia deixou à psicologia. Com efeito, é
difícil encontrar as origens da psicologia, isto é, um campo de saber preocupado com a psique,
que esta preocupação habita o pensamento filosófico desde a antiguidade. Contudo, alguns
estudiosos marcam o século XIX como o momento de ruptura entre o saber filosófico e o
psicológico, consolidando a emergência de uma ciência psicológica. Essa herança do século
XIX tem consequência direta na atual prática psicológica, que privilegia os dados biológicos,
quantitativos e estatísticos, isentando-se de um olhar crítico, social e filosófico. Consideramos
que vivemos em uma sociedade mista de disciplina e controle que tem como efeito histórico a
medicalização presente na prática psicológica. Esse fenômeno é possível a partir de relações
próprias de saber, poder e verdade, que procuram afirmara realidadedos sujeitos. Com efeito,
estas relações que procuram dominar as subjetividades só são possíveis a partir de uma ausência
de reflexão filosófica no campo científico. Pretendemos, neste trabalho, problematizar esse
pensamento hegemônico da prática psi a partir de alguns filósofos como Canguilhem e
Foucault; e defender os motivos pelos quais o psicólogo deve manter uma atitude filosóficaem
sua prática.
Palavras-chave: Canguilhem. Foucault. Medicalização. Psicologia.
Résumé: On ne peut pas nier l’influence de la philosophie sur la connaissance psychologique.
Bien que nous vivions « l’ère des neurosciences », le cerveau prend une position de détache
pour la lecture de nos émotions, de nos sensations e de nos plaisirs en fonction du nombre ou de
la nature des synapses ; nous ne pouvions pas et nous ne devrions pas ignorer tout héritage que
la philosophie a laissé à la psychologie. En effet, il est difficile de trouver les origines de la
psychologie, ça veut dire, une discipline concernée avec la psyché, puisque cette préoccupation
habite la pensée philosophique depuis l’antiquité. Cependant, certains spécialistes marquent le
XIXème siècle comme le moment de la rupture entre le savoir psychologique et le savoir
philosophique, en reforçant l'émergence d'une science psychologique. Cet héritage du XIXème
siècle a une conséquence directe dans la pratique psychologique actuelle, qui privilégie les
données biologiques, quantitatives et statistiques et décline d’une refléxion critique, social et
philosophique. Nous croyons que nous vivons dans une société mixte de discipline et de
contrôle qui a comme effet historique la médicalisation présent dans la pratique psychologique.
Ce phénomène n'est possible qu'à partir des relations de savoir, pouvoir, et vérité particulier,
que cherchent dire la vérité des sujets. En effet, ces relations qui cherchent dominer les
subjectivités sont possibles seulement à partir d’une carence de pensée ou attitude
philosophique sur le domaine scientifique. Nous avons l'intention, dans cet ouvrage, de
problématiser cette pensée hégémonique de la pratique du psi à partir des pensés de quelques
1 Graduando em Psicologia pela UNESP FCL, Assis.Bolsista de iniciação científica da FAPESP
(processo 2012/16151-5).Membro do grupo de pesquisa (CNPQ) “Deleuze/Guattari e Foucault: elos e
ressonâncias”. Orientador: Hélio Rebello Cardoso Jr. E-mail para contato: murilogac@gmail.com.
A defesa de uma atitude filosófica na psicologia
Vol. 6, nº 1, 2013.
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philosophes comme Canguilhem et Foucault ; et défendre les raisons pour lesquelle le
psychologue doit conserver une attitude philosophique à leur pratique.
Mots clés: Canguilhem. Foucault. Médicalisation. Psychologie.
* * *
“Jamais encontraremos o sentido de alguma coisa
(fenômeno humano, biológico, ou até mesmo físico) se
não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que
a explora, que dela se apodera ou nela se exprime. Um
fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma
aparição, mas um signo, um sintoma que encontra seu
sentido numa força atual.” (Gilles Deleuze).
1. Posição do problema
A psicologia caminhou durante sua trajetória histórica e epistemológica ao lado
de dois campos do saber: a medicina e a filosofia. Mesmo que nessa trajetória ela tenha
se afastado ora de um, ora de outro, e consolidado seu próprio campo de saber, suas
raízes ainda afirmam sua origem nesse interstício. Todavia, na atualidade, é notável a
supremacia de explicações biológicas em detrimento de outros aspectos da vida no
campo do saber psicológico. Se metaforizarmos que este campo vive como um pêndulo
em que ora tende aos aspectos biológicos do ser, ora tende aos aspectos subjetivos,
certamente notaremos que, na atualidade, o pêndulo se inclina ao biológico.
Ora, questões filosóficas estão implicadas em um simples perguntar de horas,
muitas vezes silenciados ou não questionados. Para a psicologia, essas questões
filosóficas estão implicadas diretamente: o que é a loucura? O que é a consciência? O
que é o inconsciente? O que pode um corpo? O que pode um cérebro? Afinal, está no
cérebro a consciência, a vida psíquica e a tal subjetividade?
Podemos fazer uma separação didática entre duas correntes, que chamaremos de
psicologia biológica e psicologia subjetiva. Basicamente, uma tem como objeto de
estudo os fenômenos anátomo-fisiológicos e suas implicações no comportamento; a
outra, os modos de subjetivação.
É certo que um olhar maniqueísta não resolveria a dicotomia mente e corpo,
tampouco é nossa pretensão resolvê-la. Contudo, é perceptível que, em direção ao
presente, certa psicologia tem se afastado do campo do saber filosófico, deixando de
lado questionamentos que tencionam sua prática. Assim, levantamos alguns
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questionamentos quanto ao processo de medicalização, presente na prática da psicologia
hoje, a partir da filosofia de Canguilhem e Foucault. Pensamos que uma atitude
filosófica por parte da psicologia seria imprescindível à prática ética.
2. Introdução
A psicologia é caracterizada como um novo saber do século XIX, não obstante
possua um longo passado, uma vez que a preocupação com a psique humana estava
presente no pensamento de diversos filósofos e médicos da antiguidade. No entanto, é a
partir do final do século XIX e começo do século XX que a psicologia se afasta da
filosofia e se constitui enquanto disciplina própria no campo científico. A partir de
então, existe a pretensão de regras universais tal como para ciências exatas dos
fenômenos psicológicos. Chauí (1997) aponta que neste período, muitos pensadores
julgaram que a ciência positiva do psiquismo, isto é, a dita psicologia científica que
emergiu na época, seria por si suficiente para explicar os fenômenos psicológicos,
sem a necessidade de uma investigação filosófica. Este pensamento parece totalmente
equivocado, uma vez que a atitude filosófica do indagar está presente em qualquer
campo científico, mesmo que implicitamente.
Chauí (1997) afirma que,
As ciências pretendem ser conhecimentos verdadeiros (...). Ora, todas
essas pretensões das ciências pressupõem que elas acreditam na
existência da verdade (...). Verdade, pensamento, procedimentos
especiais para conhecer fatos, relação entre teoria e prática, correção e
acúmulo de saberes: tudo isso não é ciência, são questões filosóficas
(...). Assim, o trabalho das ciências pressupõe, como condição, o
trabalho da Filosofia, mesmo que o cientista não seja filósofo.
(CHAUÍ, 1997, p.13).
Assim, percebe-se a importância de tal atitude filosófica sobretudo no campo
científico, que lida com a complexidade do ser humano. Ao refletir sobre o campo da
saúde mental, também objeto de estudo da psicologia, emergem indagações filosóficas
como: O que é loucura? O que é patológico? O que é normal? O que é saúde? Não é
preciso dizer que tais respostas fazem sentido para aqueles que perguntam, isto é,
para situações que servem às relações de poder e saber de determinado período
histórico.
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De maneira geral, até o século XIX, podemos considerar que o saber relacionado
à psique ou alma estava bastante atrelado aos aspectos metafísicos e teológicos, muito
próximo à esfera da religião. No século XVII, Descartes provoca uma ruptura com esse
pensamento e cria um dualismo entre corpo e mente que, segundo Barbaras (2012), tem
como consequência “a redução do corpo à máquina e da alma ao pensamento” (p.67).
Com efeito, Descartes não era tão simplista e Barbaras reconhece isso: “Descartes
reconhece a dimensão da união, isto é, da vida (...). A alma não está no corpo como
comandante em seu navio, pois estou em conjunção muito estreita com ela e de tal
maneira confuso e mesclado que componho algo como um único todo com ela”
(BARBARAS, 2012, p.67). É na vida que Descartes reconhece a união: “É fazendo uso
apenas da vida e das conversas corriqueiras, e abstendo-se de meditar e estudar as coisas
que exercitam a imaginação, que se aprende a conceber a união da alma e do corpo”
(DESCARTES apud BARBARAS, 2012, p.67). De certo modo, Descartes aponta que,
para pensar, meditar e estudar sobre o ser humano, é necessária tal divisão. O que nos
interessa é que o pensamento cartesiano se expandiu e repercutiu fortemente na
medicina, após o século XVII, que passou a pensar o homem como uma máquina.
Em seguida, vários pensadores naturalizarão as paixões da alma, antes estudadas
pelos discursos filosóficos, e concentrarão no cérebro tudo aquilo referente à vida moral
e social dos indivíduos. Para citar alguns exemplos, temos: Pinel, Esquirol, Gall, Morel,
Kraeplin, entre outros. Todos estes, de alguma forma, situaram o cérebro, portanto o
biológico, como objeto de estudo da psiquiatria/psicologia, desconsiderando toda a vida
singular de cada sujeito. Ora, isso tinha uma utilidade política: afirmar e separar raças,
excluir doentes, prender loucos e marginais; enfim, cortar o mal pela raiz, como ensina
Foucault (2000).
Segundo Canguilhem (2006a), a “ciência do cérebro” foi ganhando espaço, até
se consolidar no meio científico, propondo intervenções fundamentadas na primazia do
cerebral que não tinham como objetivo a cura, mas o confinamento. Segundo Pierre
Janet (apud CANGUILHEM, 2006, p.189) “o conceito de alienação não é uma
construção preliminarmente psicológica, ele é, antes de mais nada, algo que se deve à
polícia”, afinal, “demente é um homem que não conseguiria viver nas ruas de Paris”
(JANET apud CANGUILHEM, 2006, p.189).
Podemos considerar que esta primazia do cerebral e do biológico estará presente
até o advento da psicanálise que rompe com o cogito cartesiano ao afirmar que nós
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somos exatamente onde não pensamos no inconsciente e enfraquece tal
reducionismo biológico na explicação das patologias mentais, a partir da hipótese da
existência do inconsciente. Todavia, na atualidade, as explicações se voltam novamente
ao cérebro: neuroimagens, neurotransmissores, enfim, “neuroexplicações” de toda
ordem. A psiquiatria e a psicologia têm se fundamentado novamente nas explicações
biológicas para os fenômenos da vida, reduzindo nosso psiquismo ao corpo anatômico.
Esta ilusão de que a psicologia se basta sem a filosofia emerge de forma intensa: o
psíquico se reduz ao cérebro, que se reduz ao orgânico, que se reduz ao funcionamento
físico e químico.
Diante desse cenário, a medicalização, discutida por autores como Ivan Illich
e Michel Foucault, emerge na prática da psicologia. Em suma, a medicalização surge a
partir da transformação de questões sociais, políticas e econômicas, ou seja, de origem
fora do campo médico individual, por meio do discurso, em questões médicas e,
portanto, tornam-se passíveis de tratamento médico. Pensamos que este poder da
medicina sobre aspectos sociais é sustentado a partir de um funcionamento específico de
nossa sociedade, que compreendemos em um momento histórico onde coexistem
mecanismos da sociedade disciplinar em declínio e da sociedade de controle em
expansão.
Com efeito, desde o final do século XIX, o saber da psiquiatria tenta se
aproximar da ciência médica geral, apoiando-se em dados quantitativos e estatísticos
para explicação de doenças e, na atualidade, tais explicações advêm da teoria do
desequilíbrio químico no cérebro, aliada à estatística. Caponi (2012) considera esta
tentativa como o momento em que o corpo anatômico, até então ausente do discurso
psiquiátrico, adentra a psiquiatria para as explicações das doenças mentais. Desde então,
as doenças ditas mentais passam a ser explicadas a partir das estruturas anátomo-
fisiológicas, e o saber psiquiátrico se consolida e se legitima no meio científico quando
passa a ser dotado de poder. Foucault afirma que é o momento em que se consolida o
poder dos médicos sobre o não patológico. Ele afirma: “Tudo o que é desordem,
indisciplina, agitação, indocilidade, caráter reativo, falta de afeto, etc., tudo de aqui em
diante poderá ser psiquiatrizado” (FOUCAULT apud CAPONI, 2012, p.119).
Desse modo assistimos ao paradigma biomédico dominante nas ciências da vida.
A medicina, a psiquiatria e a psicologia têm se fundamentado na primazia do biológico
e do cerebral, desconsiderando, muitas vezes, todo o contexto social, político e
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