Cyro de Freitas Valle Nacoes Unidas o Br

Telechargé par Daniel Gomes
CYRO DE FREITAS-VALLE
NAÇÕES UNIDAS: O BRASIL PRIMEIRO
Eugênio V. Garcia *
Introdução
Cyro de Freitas-Valle era, à sua época, o brasileiro que possivelmente mais
conhecia os meandros da organização multilateral que viu nascer. Foi ele um dos
delegados que teve o privilégio de assinar a Carta das Nações Unidas, em nome do
Brasil, em 26 de junho de 1945. Até sua aposentadoria, presenciou momentos cruciais
na história da ONU, participou de inúmeras conferências e reuniões, liderou muitas
vezes as delegações que representavam o Brasil e manteve sempre vínculo estreito com
as práticas do multilateralismo em todas as suas dimensões.
Seu primeiro contato com a nova estrutura que surgia havia sido na reunião de
1944 da Administração de Assistência e Reabilitação das Nações Unidas (UNRRA),
criada para prestar auxílio aos milhões de refugiados e pessoas deslocadas durante a
guerra. Embaixador em Ottawa, foi nomeado delegado à Conferência de São Francisco.
Logo em seguida, integrou a Comissão Preparatória das Nações Unidas, incumbida de
tomar as medidas operacionais necessárias para as primeiras sessões da Assembleia
Geral e demais órgãos da ONU, incluindo o seu Secretariado. Esteve presente à I
Assembleia Geral, realizada em Londres, e foi o representante do Brasil quando o país
exerceu pela primeira vez, como membro não permanente, a presidência do Conselho de
Segurança, em 1946. Na abertura anual do debate geral, discursou perante a Assembleia
Geral em Nova York em quatro ocasiões. Exerceu outras funções como Embaixador e
culminou sua trajetória multilateral como Representante Permanente junto à ONU, de
1955 a 1961, período de efervescência política e crescentes desafios diplomáticos.
Apesar de sua expertise e envolvimento pessoal com os temas multilaterais, e do
próprio reconhecimento que recebeu em vida de seus pares e subordinados como um
Embaixador diferenciado e uma referência dentro do Itamaraty, pouco se escreveu até o
momento sobre seu legado. Não existem estudos específicos mais alentados e as
menções ao pensamento diplomático de Freitas-Valle são escassas na bibliografia. Uma
razão para tanto pode ser atribuída ao fato de que ele, homem prático, identificado com
* Doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Brasília e diplomata. As opiniões
aqui expressas são de responsabilidade exclusiva do autor.
2
o Zeitgeist da sociedade brasileira de meados do século XX, não se via como um teórico
das relações internacionais. Embora a reflexão política fosse parte de seu cotidiano,
deixou relativamente pouco material estruturado de tal forma que pudesse conformar
uma linha de pensamento passível de sistematização e crítica. Voltado para a ação e
preocupado em resolver problemas à medida que se apresentavam, Freitas-Valle
representava uma tradição de diplomatas que, eficientes em sua função, não se sentiam
compelidos a teorizar em profundidade sobre o seu ofício ou sobre as magnas questões
internacionais que os absorviam no trabalho de cada dia. Talvez por isso mesmo,
compreender melhor sua visão de mundo significa também render tributo a incontáveis
indivíduos que, embora não necessariamente engajados em considerações de natureza
mais formal ou acadêmica, imprimiram sua marca como agentes da política externa.
Presente à criação: o lugar que compete ao Brasil
O processo preparatório que conduziu à criação da ONU foi levado a cabo pelas
grandes potências que lideravam a aliança militar vencedora na Segunda Guerra
Mundial. O planejamento político-estratégico para a reestruturação da ordem mundial
no pós-guerra era conduzido em absoluto sigilo. Em 1944, na Conferência de
Dumbarton Oaks, que reuniu os Quatro Policiais (EUA, URSS, Grã-Bretanha e China),
foi aprovado um texto preliminar, trazido à luz em outubro daquele ano. Essa minuta de
Carta seria a base de negociação para a Conferência a realizar-se em São Francisco,
com o propósito explícito de estabelecer uma nova organização para substituir a
desacreditada Liga das Nações.
Em Dumbarton Oaks, o Brasil foi o único país a ser cogitado como possível
sexto membro permanente no projetado Conselho de Segurança. O balão de ensaio
lançado pelo Presidente Franklin Roosevelt encontrou resistências da Grã-Bretanha e da
União Soviética. A própria delegação norte-americana, após reunião interna,
recomendou que Roosevelt desistisse da ideia. Tanto britânicos quanto soviéticos eram
refratários a um aumento no número de assentos permanentes maior do que cinco.
Alegava-se que, se fosse muito expandido, o Conselho poderia ter sua eficiência
comprometida. Churchill e Stalin tampouco veriam com simpatia a hipótese de permitir
o ingresso de mais um “voto certo” para os Estados Unidos.
Sem saber dos planos de Roosevelt e da discussão ocorrida em Dumbarton Oaks,
Freitas-Valle anteviu que se abria uma janela de oportunidade para o Brasil.
Confidenciou a um diplomata norte-americano que ninguém discutiria a necessidade de
3
incluir os Três Grandes como membros permanentes, juntamente com a França (para
tratar de assuntos europeus) e a China (representante do continente asiático). Sugeriu
que essa era a mesma posição do Brasil e indagou se algo poderia ser feito efetivamente
no continente sul-americano “sem a cooperação do Brasil”. Por esse motivo, arriscou
dizer, se uma Carta da ONU tivesse de ser escrita para o próximo século, seria um “bom
investimento para todos” conceder uma cadeira permanente ao Brasil.
1
Convém lembrar que essa posição não era ponto pacífico no Itamaraty. Na
verdade, não havia consenso nessa matéria dentro do governo. Hildebrando Accioly,
Raul Fernandes e José Carlos de Macedo Soares pertenciam ao grupo que, na comissão
de notáveis que analisou o projeto de Dumbarton Oaks, tinha restrições quanto à
participação do Brasil no Conselho de Segurança. Pedro Leão Velloso, que exercia a
interinidade no Ministério das Relações Exteriores depois da saída de Oswaldo Aranha,
tentava manter-se neutro, ainda que reservadamente simpatizasse com aquele grupo. A
outra corrente, encabeçada pelo Presidente Getúlio Vargas, contava com Carlos
Martins, Embaixador em Washington, Freitas-Valle e outros diplomatas e juristas que
desejavam ver o Brasil reconhecido por sua contribuição à guerra, pelo tamanho de seu
território e população, bem como por sua posição na América do Sul.
Terá pesado na consideração do problema a memória da crise de março de 1926
na Liga das Nações e a subsequente retirada do Brasil em junho, em meio a críticas e
condenações, após o fracassado intento de obter um assento permanente no Conselho
Executivo daquela organização. Para os céticos, evitar a repetição de uma situação
constrangedora como aquela parecia ser motivo forte a desestimular nova investida na
organização mundial que se ia criar em 1945. Para os defensores da ideia, contudo, a
experiência histórica impunha um “dever de coerência” e caberia reapresentar a
candidatura brasileira para reforçar a antiga aspiração pelas mesmas razões apontadas
antes na Liga.
Outro nome merece ser lembrado aqui. Afrânio de Melo Franco, que antes de ser
o Chanceler da Revolução de 1930 havia sido Embaixador junto à Liga das Nações em
Genebra, defendera a permanência do Brasil no Conselho: “O meu pensamento é ainda
o de que, para sermos considerados na Sociedade das Nações e termos a autoridade a
que a nossa grandeza, o nosso devotamento aos ideais da Sociedade e a nossa grande
população nos dão direito, precisamos ter assento no Conselho”. Melo Franco
1
Freitas-Valle a Sumner Welles, carta, Ottawa, 16 out. 1944, CFV ad 44.02.00.
4
argumentava que o trabalho para o êxito não poderia ser feito “no tumulto da atividade
da Assembleia, mas sim no intervalo das sessões e por negociações de governo a
governo”. Discordou, porém, da forma intransigente como o Presidente Artur Bernardes
decidira encaminhar o assunto, criando embaraços aos acordos de Locarno e ameaçando
vetar o ingresso da Alemanha na Liga (“vencer ou não perder”). O Brasil ficaria exposto
a uma situação muito desagradável e à condenação pela opinião pública mundial se
assumisse esse “odioso papel”, advertiu (GARCIA, 2006, Capítulo 5).
Freitas-Valle acompanhou à distância aquela crise, mas não deixou de registrar
sua opinião. Em artigo para um jornal paulista, reconheceu que com sua atitude (o veto
à Alemanha) o Brasil havia promovido o “torpedeamento” de Locarno. Faltou ao país o
apoio das grandes potências e das demais nações latino-americanas, que
“inexplicavelmente tiveram ciúmes de nós”. O balanço de 1926 teria sido a “alienação”
da solidariedade do resto do continente, com resultados desalentadores para o Brasil,
isolado na região e visto na Europa como o responsável pelo fiasco da Assembleia.
2
A
exemplo de Melo Franco, Freitas-Valle apoiava a aspiração brasileira. O equívoco na
Liga havia sido de método e tática: Bernardes fizera da reivindicação um jogo de soma-
zero, superestimou suas capacidades, opôs o país às potências europeias e se privou da
alternativa de uma solução negociada ou de um recuo estratégico.
Na Conferência de São Francisco, cujos trabalhos tiveram início no final de abril
de 1945, o número de cinco membros permanentes já chegou como uma questão
fechada pelas grandes potências. A inesperada morte de Roosevelt, duas semanas antes,
selou qualquer perspectiva de rediscussão das pretensões brasileiras ao Conselho de
Segurança. Leão Velloso ainda fez gestões bilaterais junto ao Secretário de Estado
norte-americano, Edward Stettinius, mas nada conseguiu. A discussão em nível técnico
foi responsabilidade de Freitas-Valle. No Comitê 1 da terceira Comissão (sobre
estrutura e funcionamento do Conselho de Segurança), a posição levada pela delegação
representou, na prática, uma candidatura indireta. O Brasil defendeu que se criasse, em
primeiro lugar, um assento permanente para a América Latina. Posteriormente, seria
definida sua forma de preenchimento por um país da região (que o Itamaraty confiava
que fosse o Brasil). Sem chances realistas de sucesso, Freitas-Valle adotou perfil
cauteloso, conforme as instruções que recebera.
3
2
Correio Paulistano, São Paulo, 23 mar. e 11 abr. 1926, CFV 25.12.28d.
3
Em 14 de maio de 1945, a delegação brasileira retirou sua proposta e, como resultado, o Comitê tomou a
decisão de “não favorecer a criação de um sexto assento permanente representando a América Latina”.
5
A estratégia brasileira de discrição em São Francisco foi exatamente oposta ao
histrionismo exibido na Liga das Nações, mas tampouco teve êxito. Eis um dilema a
ponderar. Excelentes credenciais e uma campanha bem articulada podem contribuir para
fortalecer o pleito, mas a consecução da meta fixada, por sua natureza
fundamentalmente política, depende também de outros fatores mais amplos e de um
projeto global de política externa que sustentação crível à candidatura. Esses
requisitos estiveram ausentes tanto em 1926 quanto em 1945.
Restava ao Brasil a opção de se tornar membro não permanente pelo voto da
Assembleia Geral. Freitas-Valle estimava necessário assegurar que o Brasil fosse eleito
para o Conselho de Segurança e outros órgãos principais da ONU. Sabia que a disputa
seria renhida. “Por causa disto é que antes afirmei que não será tarefa fácil a que
incumbirá a Vossa Excelência [Leão Velloso], de vindicar no concerto das nações para
o Brasil o lugar que, em verdade, lhe compete. Não se esqueça que a Ucrânia, o Egito e
o Canadá também pretendem ser o sexto país (depois dos Big Five) do mundo”.
4
Assim, quando o Brasil foi eleito pela primeira vez membro temporário para um
mandato de dois anos (1946-47), com votação expressiva, Freitas-Valle avaliou que a
vitória era justa, pois dessa forma o Brasil via satisfeita “sua única e legítima aspiração
no seio das Nações Unidas”, ou seja, integrar o órgão máximo da estrutura recém-criada
pela Carta. Teria sido uma maneira de recompensar o esforço que o Brasil fizera na
guerra, como o único país latino-americano a despachar forças militares para o combate
na Europa.
5
O saldo da experiência, porém, terá permanecido como uma realização não
plenamente cumprida. Por muito tempo ainda, políticos e diplomatas brasileiros
sopesaram acerca do que “poderia ter sido”, caso fosse outra a configuração de fatores
ao final da guerra para fazer do Brasil o sexto membro permanente.
6
O fundador de uma tradição
Algumas hipóteses foram sugeridas para tentar esclarecer o porquê de ser o
Brasil o primeiro país a discursar na abertura do debate geral, no mês de setembro, da
Assembleia Geral da ONU. Tratado como “prática estabelecida” pelo Secretariado, esse
4
Freitas-Valle a Leão Velloso, ofício, Ottawa, 28 jul. 1945, CFV ad 1944.09.20.
5
Freitas-Valle a Leão Velloso, ofício, Londres, 17 set. 1945, CDO, Maço 40.235.
6
Anos depois, João Neves da Fontoura, Chanceler no segundo governo Vargas, talvez refletindo o modo
de ver do próprio Presidente da República, expressou-se a favor daquele objetivo, não sem um sentimento
contido de pesar e frustração: “Sempre considerei que o nosso país merecia ter sido membro permanente
do referido Conselho [de Segurança]. Mas a história se repetiu em 1945 como na falecida Liga das
Nações. E ficamos fora”. Fontoura a Freitas-Valle, carta, Rio de Janeiro, 21 jan. 1953, CFV ad
1944.09.20.
1 / 26 100%

Cyro de Freitas Valle Nacoes Unidas o Br

Telechargé par Daniel Gomes
La catégorie de ce document est-elle correcte?
Merci pour votre participation!

Faire une suggestion

Avez-vous trouvé des erreurs dans linterface ou les textes ? Ou savez-vous comment améliorer linterface utilisateur de StudyLib ? Nhésitez pas à envoyer vos suggestions. Cest très important pour nous !